A polêmica dos bebês reborn, bonecas hiper-realistas tratadas como recém-nascidos, escancarou algo muito maior do que o inusitado das cenas compartilhadas nas redes sociais. Não se trata apenas de gente adulta dando mamadeira para plástico. Trata-se de uma desconexão crescente com a realidade, uma espécie de delírio consentido, onde a fantasia passa a exigir legitimidade social e até institucional.
Ver pessoas saindo às ruas com suas bonecas no colo, comprando carrinhos, contratando babás e até exigindo atendimento prioritário em filas de supermercado ou postos de saúde já seria suficiente para provocar espanto. Mas o espanto virou costume. E, como tudo o que viraliza, bastou repetir o suficiente para que o absurdo se tornasse paisagem.
Há quem diga que tudo isso é terapêutico, que não devemos julgar o que ajuda o outro a lidar com o luto, a ausência, a solidão. E sim, o acolhimento tem seu lugar. Mas há uma diferença clara entre respeitar o simbólico e participar coletivamente de uma encenação, onde todos fingem que uma boneca é um bebê. O problema não é o afeto direcionado ao objeto, o problema é a cobrança de que todos ao redor participem da ilusão.
Esse comportamento revela um cansaço do mundo real, que cobra, que dói, que exige. É mais fácil viver uma fantasia que não contraria, que não adoece, que não se frustra. Um bebê de vinil não chora à noite, não adoece, não cresce. E justamente por isso, talvez, seja mais desejado que o real.
A discussão chegou ao Congresso, claro, e como não chegaria? Há sempre quem queira transformar sintomas em normas. Agora discute-se multa para quem tentar passar uma boneca por bebê. Mas o problema não é o projeto de lei, é o fato de precisarmos de um. O centro do absurdo não está na política, mas no que ela passou a regulamentar, delírios individuais transformados em conflitos coletivos.
Estamos vivendo uma espécie de anestesia social, onde tudo pode, tudo se aceita, e qualquer tentativa de trazer racionalidade à conversa é rechaçada como intolerância. A fronteira entre o distúrbio e o hábito está sendo corroída pelo medo de parecer insensível.
Enquanto isso, o que realmente importa, as crianças reais, as famílias reais, os problemas reais, vai ficando em segundo plano. O lúdico, que deveria ocupar o espaço do conforto íntimo e simbólico, está invadindo a arena pública, exigindo reconhecimento, legislação e respeito compulsório.
Se um dia nos perguntarem em que momento a sociedade começou a tropeçar nas próprias fantasias, talvez a resposta venha com a imagem de um adulto disputando lugar preferencial no ônibus com uma boneca no colo. Porque o mais triste não é quem acredita, é quem para de achar estranho.
Fonte: Notibras